Ela acordara disposta a grandes mudanças e, decidira isso, logo após
abrir a janela do seu quarto e vislumbrar seu jardim tomado apenas por galhos
secos e folhas caídas. Era notoriamente triste o seu jardim e estava sem vida
tanto quanto ela.
Contudo, a única dúvida que pairava na terra, no ar e no infinito de
suas ansiedades era por onde começar... Ela andava tão só nos últimos anos que
não percebera que o prazo de validade do espelho preso a parede de seu quarto
há muito já havia vencido.
Talvez se colocasse os óculos, ou se concentrasse o suficiente,
poderia se ver novamente; poderia ver como era, como mudara, como desaparecera
de si mesma. Talvez pudesse imaginar-criar-sonhar o futuro. Uma nova mulher.
Reciclada ou recriada por dentro e por fora.
Em vão. A imagem nua a sua frente tinha ossos demais, pele corada de
menos, olheiras a mais, postura de menos. Estava tão curvada quanto os galhos
retorcidos vistos há pouco. Sem vida como as folhas secas – até seu cabelo
parecia um ninho já abandonado e emaranhado no alto de sua cabeça. Era uma
imagem desbotada, desnutrida, descabelada, destruída pelo descuido, pelo tempo,
pela tristeza, pela solidão.
Naquele exato momento, sentiu um arrepio forte por cada caminho do seu
corpo. Sentiu ojeriza de seu decadente estado e, o que poderia e deveria
incentivá-la a sair da escuridão que se metera, só a arrastou, em mais uma
tarde de folga, para debaixo das cobertas. Era melhor dormir. Era melhor
esquecer. Amanhã, infelizmente, seria outro dia...
Manhã nublada de uma vida nublada e a necessidade de retornar ao
trabalho. Trabalhar como atendente de telemarketing receptivo em uma empresa de
telefonia não era nada animador. Regras, metas e cordialidade. Informações,
reclamações e xingamentos. Desgastantemente necessário à sua sobrevivência –
Que acabe logo!
Fim do dia, finalmente, e, no caminho para casa, após um dia exaustivo
de labuta, pôs-se a recordar de seu jardim. Não era grande mas já fôra belo. Já
teve a graciosidade dos raios solares em uma manhã de outono. Agora, tudo era
inverno. Tudo perdera a cor e o encantamento. E, junto com a nova estação já
não havia mais o desejo de “jardinar” aquele cantinho de terra. E a vida secou
bem diante de seus olhos.
Aquilo era demasiadamente individualista – concluíra com seus botões
do uniforme de trabalho. Ela condenara seu jardim a mesma infelicidade que ela.
Era egoísmo deixar, bem diante de seus olhos amarelados, o pequeno jardim
sucumbir e desaparecer estação após estação.
Aquele caminho para casa nunca fôra tão curto para seus pensamentos
tão longos, e, assim, quase perdera o caminho que devia descer. Na verdade,
teve que descer um ponto depois – uma pequena contramão para chegar em casa.
Duas ruas a direita, uma a esquerda e outra ainda a direita e estava na rua de
casa. Era uma rua antiga, de hábitos antigos, casas tão somente antigas mas que
conservavam a beleza e o peso de suas histórias.
Ela queria ser como aquela rua: ter histórias! Não tinha. Bem, tinha.
Mas nada era empolgante como uma história de amor ou um conto policial. Era a
história de uma vida em preto e branco. Cinema mudo. Do tipo que você se
pergunta se realmente chegou ao fim ou aquela era apenas um capítulo solto no
tempo.
A casa estava às escuras. Demorou a encontrar as chaves na bolsa e, quando
finalmente as encontrou, elas foram ao chão. Ao apanhá-las assustou-se com a
presença do gato do vizinho. Era um gato preto muito bonito – e gatos pretos
não lhe davam medo do azar. Pra falar a verdade, o gato que deveria temer a
falta de sorte da sua vizinha...
Abriu a porta, jogou a bolsa de lado e tratou de ir direto para o
banho. Precisava tirar de si o peso e a sujeira pensamentos tão negativos. Quem
sabe ela não teria a sorte de vê-los ir ralo abaixo? Sorte. Que sorte?
Uma camiseta velha era o suficiente para se sentir confortável e foi
isso que escolhera para vestir seu corpo magro. Uma olhada rápida do espelho.
Um “coque” alto depois de um “rabo de cavalo”. Pronta – mas pronta para o que?
Desde a manhã do dia anterior - dia de
sua folga- ela se fazia várias perguntas. Eram tantos “por quês”, um bocado de
“pra que”, um pouco mais de “como” e uma infinidade de perguntas retóricas. Ela
sabia algumas respostas - talvez não soubesse por onde começar. Ela estava em
crise não só com ela mas também com o mundo à sua volta. Ou era o mundo contra
ela? Ou era apenas o mundo? Ela não sabia. Mas eram mais perguntas e isso
implicaria na necessidade de mais respostas...
Uma xícara de café seria perfeita para ajudar a pensar. Mas, sem o pó
para o café, teve que recorrer ao velho
e também amado chá. Pois bem, água na chaleira, sachê de camomila escolhido e
pouco tempo depois um aroma de paz tomou conta dos cômodos de sua casa. Aquilo
a fizera lembrar da pequena horta que a casa alugada lhe proporcionara. Eram
hortaliças e um delicado jardim medicinal - com suas pequenas mudas de erva-doce,
capim-cidreira, camomila, boldo... Sua pequena horta era o melhor de sua
pequena casa. Era seu local preferido dentro e fora de si. Logo, a horta virou
um grande jardim e, tempos depois – por amarguras e ervas daninhas em sua alma
- seu jardim virou um deserto de vida.
Lembrou-se mais uma vez do dia anterior e o que vira da janela de seu
quarto. E também o que vira de si mesma. E, naquele momento, apesar de todas as
dúvidas e medos e inseguranças, sabia por onde e deveria começar: pelo seu
jardim.
Vestiu uma bermuda jeans velha. Revirou um armário no fim do corredor
e encontrou lá o que seria preciso para começar
- e seria mesmo apenas um começo. Dar vida a seu jardim necessitaria mais
que uma pá, suas galochas cor-de-rosa e outras ferramentas. Ela precisaria de
suas mãos, seu tempo e sua dedicação. Ela precisava ter vida para dar vida ao
coração de sua casa. Tinha consciência que seria intensamente doloroso e
cansativo retirar cada galho seco e retorcido, mas, era preciso para poder
finalmente começar e recomeçar e talvez fraquejar e tentar mais uma vez...
Tomou, então, um gole do seu chá de camomila; tomou também um gole de
fôlego e coragem e abriu a porta da casa... Chega de ver a vida morrer pela
janela de seu quarto.